Crianças expostas desvalidas e abandonadas Ponte da Barca 1902 – 1921
O abandono de crianças é, incontestavelmente, uma realidade presente ao longo da história da humanidade que deixou marcas profundas e com a qual ainda hoje sentimos alguma dificuldade em lidar.
Na actualidade, o abandono de recém-nascidos é uma realidade cada vez menor. As crianças são hoje raras, preciosas e muito acarinhadas pela sociedade ao contrário do que acontecia no período das Rodas e dos Hospícios em que o abandono de crianças era uma prática aceite pela grande maioria.
Com o trabalho que agora aqui publico pretendi, embora que modestamente, explorar um pouco a questão dos expostos em Ponte da Barca entre 1902 e 1921.
A Assistência às Crianças
Nos nossos dias os pais são os grandes responsáveis pela criação, educação e felicidade dos seus filhos e qualquer situação de abandono ou de maus tratos de crianças salta imediatamente para a imprensa e torna-se assunto de manchete nos meses seguintes. Contudo, nem sempre assim foi e houve mesmo tempos em que se criaram mecanismos próprios para o abandono de crianças, nomeadamente a Roda que, juntamente com outros factores, contribui para a massificação dos abandonos.
Segundo Isabel dos Guimarães Sá[1] na Antiguidade Clássica as crianças eram abandonadas em locais onde se tivesse a certeza que iriam ser rapidamente recolhidas não constituindo este facto um crime. Por outro lado o infanticídio era severamente punido e considerado um crime grave.
Na Idade Média continuou-se a verificar o abandono de crianças mas ao método utilizado desde a Antiguidade Clássica, acresceu um outro que ficou conhecido como oblatio e que se caracterizava pela entrega das crianças a um mosteiro para que fossem criadas pelos monges.
Ainda na Idade Média surge aquele que Isabel dos Guimarães Sá considera o primeiro hospital de expostos moderno: o Ospedale degli Innocenti de Florença que "possui desde o seu início uma identidade formulada nos termos estritos do abandono e criação de expostos, assente em critérios de exclusividade"[2]
Em Portugal, na segunda metade do século XIII, a Rainha D. Beatriz, mulher de Afonso III, fundou o Hospital dos Meninos Órfãos de Lisboa e no século seguinte a Rainha D. Isabel, mulher de D. Dinis, cria em Santarém o Hospital de Santa Maria dos Inocentes, logo seguido pela Real Casa dos Exposto em Coimbra.
Com o decorrer da Época Moderna chega massificação do abandono, uma realidade difícil de entender por detrás da qual estão inúmeros factores como o aumento da fecundidade, o alargamento da ilegitimidade e a diminuição da mortalidade entre outros factores de ordem demográfica. Rapidamente o Estado toma para si o cuidado destas crianças enjeitadas até porque a benevolência do soberano era uma ideia que se queria bem difundida. É um pouco neste contexto que surgem as "Rodas" que no fundo não eram mais de que formas institucionalizadas de abandono que permaneceriam até ao século XIX altura em que as novas ideologias sobre a família acabam com o abandono anónimo que teve a sua máxima expressão nos séculos XVIII e XIX.
As Casas da Roda
A Roda foi a resposta encontrada pelo poder central para responder à falta de instituições de apoio à infância desvalida e abandonada cujo número não parava de aumentar.
César Anjo[3] descreve da seguinte forma a roda:
"(...) era constituída por um cilindro de madeira vertical, de 80cm a 1m de diâmetro, girando sobre o seu eixo e com uma abertura suficiente para nele se poder depositar uma criança. Este cilindro ocupava por completo uma abertura na parede do edifício, onde se recolhiam os expostos. A portadora do enjeitado não tinha mais do que deposita-lo na Roda e fazer girar esta meia volta, pois no interior da casa, a rodeira, em serviço permanente, receberia a criança, sem poder ver quem a trazia. Assim a entrega fazia-se nas melhores condições de anonimato para a portadora e de segurança para a criança".
Este engenho teve a sua origem inicial em contexto conventual onde as religiosas, privadas do contacto do exterior mas dependente dele em certa medida, utilizavam a roda para receber coisas sem perturbar o seu recolhimento.
As rodas começaram por ser utilizadas nas Misericórdias dos grandes centros urbanos difundindo-se nos finais do século XVII a outras cidades e vilas sob a égide e a tutela municipal[4]. Alguns concelhos resistiram à sua implementação por temerem que as Rodas, ao serem instaladas para evitar abortos e infanticídios, constituíssem um convite às mães na miséria e em situação difícil para abandonarem os seus filhos, o que de facto acabou por acontecer. A esta resistência, que durou quase um século, veio pôr fim a ordem-circular de Maio de 1783 que obrigava as autoridades locais a criarem estas instituições nos respectivos espaços administrativos.
Em Ponte da Barca, apesar de não existir documentação exacta sobre a criação da Roda, presume-se que a sua instalação date precisamente do final do século XVIII.
Em 1860, segundo informações contidas no relatório distrital de 1860, a Roda de Ponte da Barca estava a funcionar na Vila, na casa da própria rodeira, a quem a câmara pagava 27$600 reis anuais, pelo trabalho e pelo respectivo aluguer. Estavam a cargo desta instituição 73 expostos, sendo 15 de lactação e os restantes de seco[6].
Os Hospícios
As Rodas acabaram por ser abolidas e substituídas pelos Hospícios. Em 1862 foi criada uma comissão para analisar e encontrar solução para a situação caótica em que se encontrava a assistência aos expostos. Os resultados apresentados foram assustadores. A taxa de mortalidade entre as crianças expostas era elevadíssima o que apontava para o desleixo por parte das amas contratadas. A roda funcionava mais como um chamariz para os pais que pretendiam abdicar do cumprimento dos seus deveres familiares e sociais do que como instrumento moralizador, e o espírito solidário e caritativo que lhe estava subjacente não passava de uma miragem. A roda passou assim, segundo os mais críticos, a ser um sistema que, em nome da caridade, protegia o vício e a miséria e espalhava a desmoralização e a morte. A comissão acabou por apelar às juntas gerais de distrito para que elaborassem novos regulamentos para tentar acabar com a permissividade institucional latente, originada pelo anonimato do abandono. Foi precisamente na sequência deste apelo que, em 1866 a junta geral aprovou o "Regulamento para a administração dos expostos do distrito de Viana do Castelo" segundo o qual em cada uma das cabeças de concelho deveria haver uma casa ou hospício com todas as condições de salubridade para receber crianças expostas, abandonadas ou desvalidas[7].
Desta forma as Rodas veriam o seu fim em 1866 e acabariam por ser substituídas pelos Hospícios. Em cada distrito as juntas gerais designaram as localidades onde seriam estabelecidos estas novas instituições de assistência que foram divididas em quatro secções: enfermaria da maternidade, acolhimento de crianças expostas, abandonadas ou indigentes.
Em Viana do Castelo foram criados vários hospícios, entre os quais o de Ponte da Barca, que geralmente funcionavam na antiga Casa da Roda. No livro de matrículas de crianças expostas[8] entre 1902 e 1921 é possível verificar uma certa confusão entre ama interna do hospício e ama rodeira o que nos leva a concluir que não só o Hospício funcionava no local onde anteriormente se situava a roda como também existia uma certa ausência de sentimento de ruptura com a antiga instituição. Em Ponte da Barca no ano de 1904, altura em que a Roda havia já sido abolida há quase 40 anos, é ainda indicado que a criança foi entregue pela ama da roda, o mesmo acontecendo quando por algum motivo a ama interna, Genoveva Rosa, não fazia o registo de entrada no hospício e, nesse caso, quem o fazia era a ama rodeira.
Na opinião de Afonso da Fonte Sá, se a intenção ao acabar com as rodas era diminuir o número de crianças expostas o resultado foi positivo porque, como demonstram os indicadores estatísticos, a procura aumentou quando foram criadas as Rodas e diminuiu quando as mesmas foram abolidas.
As Motivações
Que motivos levariam uma mãe a abandonar os seus filhos?
Gouveia Pinto[9] considerou que o abandono de crianças, pelos seus progenitores, estaria relacionado com as seguintes razões:
"1.º - Pelo perigo que corrião, se fossem conhecidos, como acontece nas uniões clandestinas, em que há todo o interesse em ocultar os factos;
2.º - Pela summa pobreza dos pais;
3.º - Pela perversidade, que suffoca em seus corações os sentimentos de amor paterno e lhes faz considerar a criação dos filhos como um pezo, de que procurão alliviar-se(...)".
Arrimar Brás dos Santos, associa o abandono à doença, à desnutrição, à falta de meios, à honra e à devassidão[10].
A maioria das crianças abandonadas logo após o nascimento, tem, na opinião de Isabel dos Guimarães Sá, grandes probabilidades de pertencer ao grupo de ilegítimos, enquanto que as que eram abandonadas com mais idade teriam mais probabilidades de serem legítimas e, neste caso, o abandono ficaria a dever-se a dificuldade económicas. Contudo, segundo a mesma autora, esta é uma tendência que não deverá ser generalizada pois também poderiam existir recém-nascidos expostos à nascença devido ao já elevado número de filhos e consequentes dificuldades económicas. Por vezes encontramos o motivo da exposição num bilhete que acompanha a criança, por exemplo:
"Pede-se para baptisar esta creança com o nome de Rosa dos Prazeres e entrega-la a uma ama que a trate bem que a mãe algum dia tomará conta della. Se foi exposta foi para encobrir uma falta que trazia grandes desgostos à família"[11]
No caso dos desvalidos as motivações estavam, de grosso modo, ligadas a factores económicos, no entanto são referidos também casos de orfandade e de demência. Apresentamos alguns exemplos:
"...mãe viúva e absolutamente pobre, perdeu o juízo".[12]
"...e porque a mãe, solteira, faleceu sem deixar família..."[13]
"... visto não ter meios de fortuna ou parentes que a possam crear."[14]
Apesar de não serem consensuais as posições dos investigadores em relação aos motivos que levam à exposição das crianças, no caso dos desvalidos, não restam grandes dúvidas. Isto deve-se, em parte, ao facto de haver um contacto directo entre a instituição e a pessoa encarregue de entregar a criança e que apresenta também as razões pelas quais esta deve ser aceite como desvalida.
Locais de abandono
No estudo em causa a maioria das crianças eram abandonadas durante a noite sendo os horários mais comuns entre as onze e a meia-noite ou então às primeiras horas da manhã. Com a abolição das Rodas as crianças passaram a ser abandonadas em locais públicos de forma garantir que alguém as encontrava, normalmente à porta de alguém. Logo que eram encontradas as crianças eram levadas ao hospício para ser matriculadas sendo depois baptizadas e logo após entregues a amas externas. Não apareceu nenhum caso, no período estudado, em que houvesse referência a crianças que ficaram no hospício.
No período e local em análise as crianças eram, na sua maioria, expostas na vila em lugares públicos ou à porta de casas particulares para que pudessem ser facilmente detectadas. Dentro do espaço da vila, a Rua Plácido Vasconcelos era o local mais utilizado, talvez por aí morar a ama interna do Hospício.
A exposição de crianças nas aldeias do concelho não deixou também de ter o seu significado e o abandono nestes locais poderá estar, segundo Teodoro Afonso da Fonte, ligado a uma estratégia familiar que pretendia manter as crianças sob estreita vigilância e protecção. Atrevo-me no entanto a avançar com uma hipótese explicativa que estará ligada à distância e às dificuldades em transportar a criança anonimamente até à vila. Alguns locais rurais de abandono eram bastante distantes e de penoso percurso mais penoso ainda quando se percorre sozinho ou a pé, às vezes por caminhos alternativos, para não se ser visto com a criança recém-nascida ao colo. Se se soubesse de quem era a criança ela seria, como já referimos, restituída à família. A este factor poderá também estar ligada a exposição de crianças nos concelhos vizinhos.
O Enxoval e os códigos de abandono
Independentemente do local onde eram expostas as crianças foram, de uma forma geral, acompanhadas de um enxoval, sendo também muitas as que traziam um bilhete ou determinados sinais particulares que facilitariam a sua identificação posterior. Durante a investigação foram registados dez casos de crianças que traziam consigo sinais de reconhecimento como, fitas de diversas cores, pano com iniciais gravadas e até mesmo uma medalha de Nossa Sr.ª de Lurdes. Estas marcas identificadoras são sinal de uma evidente preocupação dos pais com os filhos que iam abandonar, o mesmo acontecendo com os bilhetes a pedir que tratassem bem a criança porque haveriam de ser recompensados mais tarde. Por exemplo:
"A mulher que tratar sempre bem esta creança será um dia recompensada, se ella ainda viver"[15].
Quando uma criança dava entrada na Casa da Roda ou no Hospício era matriculada e a ama rodeira/interna procedia ao registo de todas as peças que acompanhavam as crianças, que popularmente eram designadas por "enxoval". Ao anotar as peças de vestuário que se encontravam com a criança no momento da exposição estava-se também a contribuir para a sua futura identificação. Um enxoval mais rico poderia significar uma origem social privilegiada e, nesse caso, o motivo do abandono seria a ilegitimidade. Por outro lado, um enxoval constituído por vestuário "velho" poderá indicar situações extremas de pobreza. No livro de expostos analisado, é passível de ser detectada uma categorização do vestuário por parte da ama interna do hospício. As peças eram descritas como "tudo novo", "tudo usado", "tudo velho" e "farrapos". O mais comum é encontrarmos peças usadas juntamente com algumas novas. Eis alguns exemplos:
"Quatro panos usados, duas blusas novas, uma touca usada, um chaile usado, uma liga".[16]
"Três camisas, três panos e dois meios lenços usados, um vestido novo".[17]
"Duas camisas novas, três chambres novos, um vestido novo, duas toucas novas, três meios lenços usados, cinco panos de chita usados, duas ligas de mossim novas, uma baeta de xadrez nova".[18]
No período estudado, encontrei também crianças sem enxoval possuindo apenas o que levavam vestido havendo mesmo um caso em que a criança foi exposta "envolta numa saia velha".
Como muitas das crianças eram expostas logo após o nascimento, uma das peças que integravam os enxovais eram as envoltas ou apertadores que serviam para proteger o resto do cordão umbilical.
O papel das amas
As amas desempenharam, quer na Casa da Roda quer no Hospício, um papel fundamental. O cargo de ama rodeira esteve, como o próprio nome indica ligado ao funcionamento das Casas da Roda, generalizando-se com estas conforme iam sendo criadas nos concelhos por ordem da Intendência Geral da Polícia, de 10 de Maio de 1783. Esta ordem determinava que se criassem Rodas em todas as cidades e vilas e que se nomeasse um salário a uma pessoa para nelas receberem, a qualquer hora do dia ou da noite, os enjeitados que nela aparecessem expostos. Um cargo importante, bem pago, que originava conflitos entre as candidatas que procuravam utilizar redes de influência para merecerem a preferência e confiança das autoridades locais.
Após a abolição das Rodas o cargo de maior prestigio era o de ama interna do Hospício. Em Ponte da Barca a ama interna do hospício entre 1902 e 1921 foi Genoveva Rosa.
Para além da ama rodeira ou do hospício existiam as amas de leite e as amas externas. As amas de leite também podiam ser externas mas durante o período em que existiram as Casas da Roda era comum estas terem uma, ou mais, amas de leite internas para que pudessem auxiliar os enjeitados logo que eles desse entrada na roda. Eram as rodeiras, e mais tarde a ama interna do hospício, que procuravam, em conjunto com as autoridades locais, as amas externas que se encarregavam da criação dos expostos.
As sucessivas recomendações dos provedores e até mesmo do poder central para que se tivesse cuidado ao seleccionar as amas leva a crer que nem sempre estas crianças eram alvo das melhores atenções, servindo apenas, em alguns casos, de um meio fácil de rendimentos. A autorização de criação só deveria ser concedida após um exame pelo cirurgião do partido e pela rodeira, sempre com a preocupação de dar absoluta prioridade à boa criação das crianças e não aos interesses particulares das amas[19]. Contudo, o facto de o número de crianças expostas ser superior ao número de amas acabou por ser altamente prejudicial para as primeiras visto que impossibilitou uma boa filtragem selectiva das candidatas a amas. Esta deficiente filtragem bem como a necessidade de entregar as crianças às amas num prazo máximo de três dias, como estipulava a lei, favoreceu o aparecimento de algumas amas "madrastas". Teodoro Afonso da Fonte fez referência na sua tese a uma citação apresentada por Luís Pina em 1964 que dizia sobre este assunto, a título de exemplo, o seguinte: " uma ama hedionda de expostos, em Coimbra, que matara por suas por suas mãos 33 dessas desventuradas crianças, continuando a receber a respectiva subvenção municipal. Foi por isso condenada à morte, em 1772".
No que diz respeito ao caso de Ponte da Barca, tendo em conta os constantes apelos para que as crianças sejam entregues a "boas" amas nos bilhetes deixados pelas mães, é possível que a alta mortalidade registada esteja de facto relacionada com maus tratos. Num ofício enviado pelo presidente da Câmara de Ponte da Barca em 19 de Julho de 1862 pode-se ler que algumas amas eram responsáveis "pela espantosa mortandade" dos expostos e que essa alta taxa de falecimentos provinha "da falta de zello, vigilância e carinho da parte das amas (...) que só as próprias mães sabem prestar instintivamente aos seus filhos"[20]. Não obstante, a grande maioria dos falecimentos estariam relacionados com a miséria e com o desconhecimento as mais elementares regras de higiene, uma realidade bem presente nesta região até ao fim da primeira metade do século XX. É comum ver na imprensa local do final do século XIX e primeiras duas décadas do século XX o apelo constante por parte das autoridades para diminuir os efeitos da decadente salubridade.
Falecimentos de Crianças Expostas/Desvalidas entre 1902 e 1921 em Ponte da Barca
Quando comparamos a taxa de mortalidade entre expostos e desvalidos verificamos que esta é muito superior entre os primeiros. Das catorze crianças desvalidas registadas apenas duas faleceram facto que consideramos estar relacionado com a entrega do desvalido a pessoa conhecida da família da criança. Nos casos estudados, à excepção de um em que a criança foi apresentada como desvalida pela Junta da Paróquia, a pessoa que apresentava a criança no Hospício para ser matriculada era a quem ela ficava entregue. Enquanto era bastante comum as mulheres que apresentavam os desvalidos se oferecerem para os criarem o mesmo não acontecia com os expostos. Esta situação poderá estar relacionada com o facto de, no caso dos desvalidos, serem pessoas conhecidas da criança a entrega-la no Hospício, como vizinhos ou pessoas amigas, havendo já algum tipo de laço entre criança e ama. Por outro lado, e numa perspectiva mais pessimista, podemos considerar que o interesse da ama poderá estar unicamente relacionado com o salário que esta iria receber para criar a criança, o que eu pessoalmente não acredito.
Os Baptismos
Quando nasciam a maioria das crianças levavam aquilo a que se chama "água de recurso" que consistia num baptismo por invocação da Santíssima Trindade na altura do nascimento. É comum encontrar nos bilhetes que acompanham as crianças referências como: "Aqui vae este anjo para baptisar aonde tem já água e o nome della será Laura de Jesus..."[21] ou ainda: "Este menino já tem as primeiras palavras do baptismo. Peço favor de porem o nome António de Nossa Senhora"[22]. Apesar destes bilhetes, o baptismo era uma das formalidades a que a criança era sujeita quando dava entrada no hospício. O nome e os padrinhos eram escolhidos pela ama interna salvo se juntamente com o exposto viesse a indicação do nome da criança o que acontecia com frequência.
"Pede se o favor de lhe porem o nome de Marquelina Fasgencia d´Azevedo"[23]
"A criança está por baptisar. Pede-se para que ella receba o nome de Carlos Alberto"[24]
Em relação aos padrinhos não dispomos de muita informação sabendo-se apenas que eram, geralmente, habitantes da vila.
Embora na folha de registo não conste a idade das crianças aquando da sua entrada para a tutela dos hospício, é possível perceber através dos bilhetes ou do enxoval que as crianças desvalidas, em menor número como se pode verificar no gráfico abaixo, entravam com cerca de dois ou mais anos, enquanto nos expostos é mais comum encontrar recém-nascidos.
Crianças expostas/desvalidas em Ponte da Barca entre 1902 e 1921
Em relação aos números, como já referi, o de expostos é claramente superior ao de desvalidos, não se verificando uma discriminação de género. Constatamos que em 134 crianças 59 são do sexo feminino e 75 do sexo masculino. Poderia existir uma maior tendência para abandonar crianças do sexo feminino visto que poderiam representar um novo perigo de desonra ou um maior encargo económico para a família enquanto os rapazes seriam uma ajuda extra ao trabalho para além de o risco de desonra familiar por motivos de gravidez desaparecer, no entanto não é notória uma tendência a abandonar mais meninas do que meninos. De facto, como já referi, em Ponte da Barca o número de crianças do sexo masculino expostas é superior ao sexo feminino.
O Princípio do Fim
À semelhança do que acontece no resto do país, em Ponte da Barca há uma tendência para a diminuição do número de crianças expostas o que encontra a sua justificação não só na abolição das rodas como também nos crescentes subsídios de lactação dados pelas câmaras.
Este sistema de subsídios acabou, como refere Isabel dos Guimarães Sá, com a principal característica do sistema anterior - o anonimato - uma vez que para serem subsidiados um ou ambos os pais tinham de se identificar. No entanto há expostos no verdadeiro sentido do termo até ao final da década de trinta do século XX, agora novamente expostos em locais públicos à semelhança do que acontecia antes da criação das Rodas. Embora no estudo Abandono de Crianças, Identidade e Lotaria, a mesma autora refira um máximo de 10 crianças expostas por ano na primeira metade do século XX, baseando-se em teses de mestrado, o facto é que em Ponte da Barca nos anos 1903, 1904, 1906 e 1910 os números são superiores, sendo que, a título de exemplo, só em 1904 foram expostas 25 crianças e no ano anterior 17. É, no entanto, notória a diminuição do número de expostos com o passar dos anos.
Bibliografia
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Ariés, Phillipe, L´enfant et la vie familiale sous l´Ancien Régime, Paris, Seuil, 1973.
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Sá, Isabel dos Guimarães, A circulação de crianças da Europa do Sul: o caso dos expostos no Porto no século XVIII, Lx, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
Sá, Isabel dos Guimarães, "Abandono de crianças, identidade e lotaria: reflexões em torno de um inventário", in Inventário da Criação dos Expostos do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, Santa Casa da Misericórdia, 1998.
Santos, Graça Maria de Abreu Arrimar Brás dos, A assistência da Santa Casa da Misericórdia de Tomar: os expostos: 1799-1823, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002.
[1] Isabel dos Guimarães Sá, Abandono de crianças, identidade e lotaria: reflexões em torno de um inventário, 1998
[2] Idem, p.12
[3] César Anjo citado por Teodoro Afonso da Fonte, No Limiar da Honra e da Pobreza, 2006, p.133
[4] Teodoro Afonso da Fonte, No Limiar da Honra e da Pobreza, 2006
[5] Idem, p. 143. Os dados relativos à população dos concelhos do Alto Minho foram extraídos do Mapa da Província de Entre Douro e Minho, levantado por José Gomes de Vilas-Boas, em 1794 e 1795.
[6] Idem, p. 150.
[7] Entenda-se por expostas as crianças filhas de pais incógnitos, por abandonadas crianças filhas de pais conhecidos mas que desapareceram sem deixar quem delas tratasse, e desvalidas aquelas que por algum motivo não pudessem ser criadas pelos pais. A designação "exposto" só foi abolida em 1958 após a publicação do Código do Registo Civil.
[8] A.M.P.B. Livro de Expostos 1902-1921
[9] Gouveia Pinto, 1820, citado por Teodoro Afonso da Fonte.
[10] Graça M.ª Arrimar Brás dos Santos, A Assistência da Santa Casa da Misericórdia de Tomar: Os Expostos 1799-1823, 2002.
[11] A.C.M.P. Livro de Exposto 1902-1921fl. Esta criança viria a falecer no mesmo ano em que foi entregue.
[12] Idem, fl 61
[13] Idem, fl 47v
[14] Idem, fl. 33v
[15] A.M.P.B. Livro de Registo dos Expostos 1902-1921 fl. 24v.
[16] A.M.P.B. Livro de Expostos 1901-1921, fl. 10 v.
[17] Idem, fl. 25v.
[18] Idem, fl. 150v.
[19] Afonso Teodoro da Fonte, No Limiar da Honra e da Pobreza, 2006, p.328
[20] Idem p. 345 informação retirada de um oficio enviado pelo Presidente da Câmara de Ponte da Barca ao Governo Civil de Viana do Castelo, em 19 de Julho de 1862.
[21] A.M.P.B. Livro de Expostos 1902-1921, fl.42
[22] Idem, fl. 43
[23] Idem, fl. 132v.
[24] Idem, fl. 75